Um apontamento único e recheado de pormenores.
A intervenção do Dr. Paulo Pereira, relações públicas da empresa do Campo Pequeno, nas tertúlias do Castelo de São Jorge, onde marcou também presença também Joaquim Bastinhas, está recheada de curiosidades. Uma verdadeira lição de cultura taurina!
As entradas de toiros em Lisboa no século XIX
1. Enquadramento político-social
O século XIX português inicia-se politicamente com as
invasões francesas (1807-1810). Na eminência da entrada do exército napoleónico
em Lisboa, comandado pelo General Junot, a família real foge para o Brasil, já
sob as vistas, mas não ao alcance do tiro das tropas francesas. A 13 de
Dezembro de 1807, a
bandeira portuguesa é substituída pela bandeira francesa, no Castelo de São
Jorge. As tropas francesas só viria a ser expulsas de Portugal em 1811
Assinada a paz de Paris (1814), a Portugal mais não resta
que o orgulho do esforço heróico posto na defesa do seu solo. Os ingleses, que
nos representaram no Congresso de Viena, em 1815, reunido a pedido das potências
europeias[1], não obtiveram para Portugal qualquer
reparação de guerra.
No final das invasões francesas, Portugal é, politicamente,
uma espécie de protectorado britânico, onde uma Junta Governativa nomeada pelo
Príncipe Regente D. João VI [2] é profundamente influenciada pelo
General inglês Bredsford o qual, praticamente, exerce uma ditadura pessoal no
país através daquele órgão.
Longe de iniciar um período de paz, Portugal vê-se, por
vários anos, mergulhado numa grande instabilidade politica, com a ocorrência de
várias conspirações, uma guerra civil (1828-1834) entre Absolutistas,
partidários de D. Miguel e Liberais, partidários de D. Pedro IV, ambos filhos
de D. João VI que morrera sem que a sua sucessão tivesse ficado devidamente
esclarecida, sequela aliás da independência do Brasil, declarada por D. Pedro,
aclamado imperador com o título de D. Pedro I Imperador do Brasil. Acabada a
Guerra Civil, eclodem ainda várias revoluções.
Só perto do final do reinado de D. Maria II [3] (f, 1853), com a Regeneração (1851) vai
o país finalmente entrar num período de paz e desenvolvimento conhecido pelo
Fontismo e também por Regeneração. São quatro décadas que abarcam os reinados
de D. Pedro V e D. Luis I e que duram até à crise do Ultimatum Inglês em 1890,
já no reinado de D. Carlos I.
Mas voltemos atrás, a D. Miguel, o Absolutista. Foi um
grande aficionado aos toiros. Ainda hoje é conhecido também como o
Rei-Toureiro. À sua iniciativa se deve a construção da Praça de Toiros do campo
de Santana, que Carlos Conde refere no fado com que iniciámos esta tertúlia.
Inaugurada a 3 de Julho de 1831, foi demolida em 1889 e por ela passaram as
grandes figuras do toureio de Portugal e de Espanha[4].
A Praça do Campo de Santana [5] é inaugurada durante a Guerra Civil que opôs
Absolutistas e Liberais.
O tema que nos propomos abordar foi extremamente bem
retratado em poesia, por Carlos Conde e, posteriormente, cantada em fado por
Alfredo Marceneiro e Rodrigo, entre outros, com o título: “Domingo de Agosto”.
Embora sem precisão factual, como veremos a seguir, mas como pincelada do
ambiente vivido, Carlos Conde consegue fazer-nos recuar ao século XIX e reviver
toda a alegria de uma entrada de toiros no Campo de Santana:
Domingo de Agosto
Nesse domingo de Agosto
Foi linda a espera de gado
Desde manhã ao sol-posto
Houve alma, toiros e fado
Não havia traquitana,
Que não estivesse enfeitada
E via-se engalanada
Toda a praça de Santana.
Gente alegra, gente lhana
Trajando com raro gosto
Fazia bem o seu posto
De toureiros e fadistas.
Que lindo rancho de artistas
Nesse domingo de Agosto.
Descantes e guitarradas
Se ouviam de manhãzinha
Gente a ver se o gado vinha,
Os campinos e as montadas.
Fizeram-se desgarradas
Com encanto e com agrado
E era já manhã, sol nado,
Quando o gado entrou na praça.
Que encantamento, que graça.
Foi linda a espera de gado.
Toirada, viva, emoção,
Encantamento e prazer
Muitas palmas, sensação
Lide, nobreza a valer.
E era tanta a sedução
Do povo bem predisposto,
Que se via em cada rosto
A alegria manifesta.
Foi um domingo de festa
Desde manhã ao sol-posto.
E à tarde encheram-se as hortas
Das mesmas gentes bizarras
E só se ouviam guitarras
Nas tascas fora de portas.
Só alta noite, horas mortas,
Após o ter-se vibrado,
Saiu o povo encantado
Ébrio de imensa alegria.
Só porque naquele dia
Houve alma, toiros e fado.
As esperas e entradas de toiros consistiam no acompanhamento
das reses que iam ser lidadas, desde o ponto de concentração da manada, às
portas de Lisboa, até à praça do Campo de Santana, que ao tempo ficava já nos
limites da cidade. Constituía um importante divertimento popular,
verdadeiramente interclassista. As referências à participação do clero são
escassas. Contudo, António Roduvalho Duro, por pseudónimo “Zé Jaleco”, refere
no seu livro História do Toureio em Portugal, publicado em 1907, o “gordo Padre
Matheus” como um dos assíduos frequentadores das esperas. Muito provavelmente,
o papel dos Padres estará mais relacionado com a administração da extrema-unção
a algum incauto, acidentado durante a espera e que, por via de um previsível
“passamento”, necessitasse de cuidados espirituais adequados. O certo é que a
interacção nobreza-povo era muito mais evidente.
Fidalgos, burgueses, cavaleiros, boleeiros, camponeses
operários, prostitutas e fadistas convergiam para o ponto de encontro com a
manada, às portas de Lisboa, nas Marnotas, no concelho de Loures, onde os
animais descansavam. De permeio ficavam as hortas de Carriche, do Campo Grande,
os retiros com petiscos e descantes, as grandes correrias e um sem número de pequenos
e grandes “faits-divers” que estão descritos por vários autores, com os mais
modernos a copiarem mais ou menos “ipsis verbis”, o que os seus pares do inicio
do século XX nos deixaram escrito.
João Machado Pais, num artigo publicado em 1983, na revista
Análise Social, intitulado “As prostitutas na boémia dos inícios do século XX,
escreve:
“As esperas de toiros constituíam motivo de franca
confraternização entre boémios de várias castas, desde o Faia do Bairro Alto,
até ao mais requintado aristocrata. Nas esperas de toiros, a cavalo ou de trem,
ao som do fadinho chorado, lá víamos as ”cocotes chiques” ao lado da Severa, da
Júlia Gorda ou da Joaquina dos Cordões”. Os “doidos Marialvas, integrados em
grupos de desordeiros e beberrões, fadistas e vagabundos, alojavam-se por todas
as locandas, desde o Arco do Cego até Loures, onde esperavam até alta madrugada
pela largada dos toiros. Eram acompanhados pelas amantes e outras “mulheres de
vida fácil”. Os próprios fidalgos trajavam à fadista. A integração era perfeita
e as distinções super-orgânicas e culturais de “significado-normas-valores
aparecem socialmente minimizadas”.
Machado Pais, que por sua vez cita o jornal O Boémio, de 5
de Fevereiro de 1910, aborda comportamentos e indumentárias, nestes termos:
“Aqui, um fadista de calça à boca-de-sino, cinta, jaqueta e
chapéu desabado, tocando fados ou corridinho; ali um filho pródigo que andava
dissipando a herança paterna; acolá um fidalgo pândego, amador da paródias das
esperas, trajando igual ao fadista, com esporas nos sapatos com salto de
prateleira.”
2. As esperas de toiros para o Campo de Santana
José Pedro do Carmo em “Touros, arte portuguesa”, editado em
1926, descreve a espera nos mesmos moldes que Roduvalho Duro na obra já citada,
pelo que tentamos aqui fundir as duas descrições:
A condução do gado bravo para o Campo de Santana tinha o seu
início à terça-feira, quando os toiros levantavam das lezírias com destino a
Frielas, onde descansavam até sexta-feira, á noite para, no Sábado pelas 5 da
tarde, seguirem das Marnotas para o Campo Pequeno e aí permanecerem, junto ao
Palácio Galveias até à uma hora da madrugada, sendo pontualíssima essa hora
para alargada definitiva em direcção aquela praça. Pelas estradas até às
Marnotas, encontravam-se os melhores batedores de Lisboa, conduzindo os
aficionados. As mundanas mais em voga, envoltas nas suas mantilhas graciosas,
de toilettes espaventosas, sorriso nos lábios e petulantemente recostadas nas
caleches tiradas a parelhas com guizeiras, não faltavam à festa. Também
apareciam damas elegantíssimas.
À cabeça do gado iam os cavaleiros mais destemidos e os
campinos. Pelas 5 da tarde, os touros levantavam-se das pastagens para
iniciarem o percurso até ao Campo Pequeno.
Enquanto o gado descansava no Campo Pequeno, regurgitavam de
aficionados as casas de pasto desde Carriche até ao Arco do Cego, sendo as mais
preferidas a Nova Cintra, Patusca, José dos Santos, Quebra Bilhas, Colete
Encarnado, António da Joana, entre outros, onde as guitarradas se faziam ouvir
nos descantes dessa época: Emília Midões, Cesária, Maria José Formiga, Borboleta,
Maria do Carmo, Manuel Serrano, Patusquinho, António dos Fósforos, José Um,
Calcinhas e outros. Peixe frito, salada e vinho dominavam as ementas.
De entre os números aficionados que nunca faltavam, às
esperas destacavam-se o Conde de Vimioso, O marquês de Castelo Melhor, D. Caetano
de Bragança, D. Alexandre de Vila Real, Avilezes, Galveias, Maniques, D. João
de Menezes, Lobo da Silveira, D. Luiz do Rego, D. António de Portugal Carlos Relvas,
Marques de Belas, D. José de Melo e Castro, Visconde da Graça, Vitorino Froes,
Alfredo Marreca, Alfredo Tinoco.
Dado o sinal de partida à uma hora da madrugada de domingo,
o curro punha-se em marcha.
O cortejo era assim organizado: à frente e bem destacados,
alguns soldados de cavalaria da Guarda Municipal; a seguir e de pampilho ao
ombro, junto com os campinos, alguns cavaleiros dos mais destemidos, à cabeça
da manada, com o cabresto-guia à frente e os restantes envolvendo os toiros e,
na retaguarda, mais soldados de cavalaria, seguidos de muitos aficionados a
cavalo e de uma aluvião interminável de trens guiados pelos grandes batedores:
José Maria dos Anéis, Gradil, Leonardo, “O Preto”, Cambrainha, Pingalho,
Ratinho, Zé Gordo, Carlos Bonito e outros.
No meio de uma nuvem de poeira, o espectáculo era
surpreendente e mal se divisavam os vultos, ouvindo-se o barulho produzido
pelas ferraduras arrancando faíscas nas pedras; os incitamentos dos campinos e
cavaleiros, o tanger dos chocalhos, o tilintar das guizeiras e as pragas dos
transeuntes. Era um furacão que passava, que mal dava tempo aqueles a quem
aturdia, para saberem o que significava.
No largo de Santa Bárbara, a cavalaria da Guarda Municipal
mandava parar a multidão[6], que a custo sustinha o ímpeto da
carreira, a fim de o gado ir unicamente acompanhado pelos campinos até entrar
na praça. Chegado ali, permitia-se então que avançassem todas as carruagens,
seguidas do povo e dos cavaleiros.
O itinerário é ainda hoje fácil de reconstituir, pois a
toponímia desta parte da cidade, mais de um século volvido, mantém-se com
poucas alterações: Arco do Cego, Calçada de Arroios, Largo de Santa Bárbara,
Rua de Santa Bárbara, Paço da Rainha, Campo de Santana.
As corridas eram vertiginosas pela Rua de Santa Bárbara até
ao Campo de Santana. Nessa batida louca e sem olhar a obstáculos nem recear
desastres que tantas vezes sucederam, havia só um objectivo: Chegar primeiro á
praça para ganhar a bandeirinha[7] que se achava colocada na porta dos
cavaleiros. Faziam-se apostas[8]. O batedor que alcançava a referida
bandeirinha podia contar com a gorjeta dos fregueses e assim adquiria a fama
para fazer valer os seus serviços no futuro.
Gado tresmalhado era frequente e os acidentes também. Muitas
vezes os toiros eram recuperados em plena baixa lisboeta e depois “reencaminhados”
para o Campo de Santana.
3. O fim das esperas de touros
Com a demolição da praça de toiros do Campo de Santana, praticamente
acabou o encanto das esperas de toiros. O terminus (Campo Pequeno) passou a ser
aquele que era o ponto de partida para o Campo de Santana. A principal etapa da
condução dos toiros estava assim “queimada”.
Muito embora ainda tivesse havido algumas esperas de toiros
para corridas na nova praça do Campo Pequeno, inaugurada a 18 de Agosto de
1892, o certo é que as esperas jamais voltaram ao seu antigo esplendor e
acabaram por se perder. Os toiros passaram a vir enjaulados de comboio até à
estação de Entrecampos e, daí conduzidos para a praça, ainda e sempre nas
jaulas[9].
Na verdade, tal como na canção “Vídeo killed the radio
star”, o progresso, o urbanismo e a criação de novas centralidades, contribuiu
para “matar” este espectáculo tão característico e tão do agrado das gentes de
Lisboa.
O crescimento urbanístico de Lisboa envolveu a Praça de
Toiros do Campo Pequeno, criando uma nova centralidade urbana. O progresso
inviabilizou a tradição… Hoje em dia, os toiros são transportados em camiões,
em jaulas individuais, das pastagens até à praça…
Contudo, em Junho de 1972, numa iniciativa do jornalista e
critico tauromáquico Leopoldo Nunes ao tempo vereador na Câmara Municipal de
Lisboa, realizou-se uma entrada de touros pela Calçada de Carriche até ao campo
Pequeno, numa ecocação das esperas do inicio do século. O resultado foi
desastroso pois tresmalharam-se toiros e cabrestos, a situação ficou incontrolável…os
toiros espalharam-se um pouco por toda a cidade, houve mortos e feridos e,
desde então nunca mais tal tipo de iniciativas se realizou na capital
portuguesa.
Contou-nos Orlando Vicente, campino que participou nessa
entrada de toiros, que, até alta madrugada, teve de perseguir um cabresto desde
o Campo Grande à Alameda D. Afonso Henriques, correndo da encosta do Instituto
Superior Técnico até à Fonte Luminosa e daí em sentido contrário. Ao passar por
uma vivenda que ali existia à época, junto à Avenida Almirante Reis, o cabresto
saltou parta o quintal. Eis senão quando a proprietária, pessoa idosa que vivia
sozinha, irrompe de vassoura em punho contra o intruso, pensando que era um cão
que estava estragar-lhe o jardim em, possível “ajuste de contas” com algum gato
vizinho. Valeu a “estranha presença de um homem a cavalo que fez ver à senhora
o perigo que corria e a convenceu a refugiar-se em casa. O cabresto foi
depois neutralizado e a manada reagrupada quase de manhã. De facto além destes
dois incidentes, houve correrias atrás de cabrestos na Avenida do Brasil e na
Avenida Gago Coutinho.
Contudo, um pouco por todo o Ribatejo, de Vila Franca a
Alcochete, da Chamusca ao Porto Alto, as esperas de toiros continuam vivas e
são, como há mais de cem anos, um ponto de encontro e de são convívio entre
gente de todos os estratos socioprofissionais.
Lisboa, Castelo de São Jorge, 13 de Outubro de 2013
Paulo Pereira
Bibliografia:
“História da Tauromaquia”, Duro, José Roduvalho (Zé Jaleco”),
1907
“Touros, Arte Portuguesa”, Carmo, José Pedro, 1926
“Fado Marialva”. Moraes, António Manuel, 1926
“Revista Panorama”, Número especial, 1945
“Análise Social”, João Machado Pais, 1983 “As prostitutas na
boémia dos inícios do século XX”.
[1] Inglaterra, Rússia,
Prússia e Áustria
[2] D. João VI, só regressaria
a Portugal em 1821
[3] Foi no reinado de D. Maria
II que as touradas foram proibidas 19 de Setembro de 1836 e revogada esta
proibição a 30 de Junho de 1837
[4] Cúchares (1851) Frascuelo
(1866), por exemplo
[5] A segunda que existiu
neste local.
[6] Segundo António Manuel
Moraes em Fado Marialva,
publicado em 2007,”Quando o cortejo comandado pelo General Queirós e com
Ezequiel Carvalho ou Ezequiel da Póvoa à cabeça, chegava ao Largo de Santa
Bárbara, a Guarda Municipal a cavalo mandava parar e a multidão obedecia com
muito esforço devido ao entusiasmo frenético que se apoderava dos aficionados”.
[7] De acordo com Antonio
Manuel Moraes, op. Citada, “ o batedor de sege ou d etrem que a conquistasse
era obsequiado com gorjetas dos clientes, ficava famoso, com lucros para
futuros serviços de transporte”
[8] De acordo com Antonio
Manuel Moraes, op. Citada, “Realizavam-se apostas clandestinas.”
[9] A estação ferroviária de
Entrecampos foi inaugurada 20 de Maio de 1888