Sobrava ele, Joaquim José Santos Abrantes – Quim Zé,
para os amigos de criança, Joselito de Portugal, para a afición – naquele café
onde se fizera habitual, depois de anos à procura de um poiso
que o fizesse
sentir um pouco mais perto dos seus anos de glória toureira. Foram dois. Apenas
dois. Mas que dois…
Vivera em figura. Convidado a tentar nas casas
importantes, fotografado ao lado dos maiores da sua época (e como assentava bem
naquelas fotografias!), acudira a jantares de gala, com fatos feitos à medida,
e tivera o nome na boca do mundillo. Andava presumido pelas ruas, enquanto lhe
lançavam “sorte toureiro!”, quando lhe perguntavam pelos próximos compromissos.
Foram dois anos.
Já não andava pelas ruas com o mesmo passo presumido,
de peito aberto, “à compás” - o anonimato levara-lhe o orgulho do andar, mas
guardava ainda a muleta nos dedos. Gesticulava por derechazos, naturais e
trincherillas, e mantinha o “gracias” e o castelhano, que se adensava quando
“hablava de toiros”. Ainda sentia os restos, as sobras daqueles dois anos de
glória. Mas era só, naquela mesa, com marcas de beatas e jornais passados.
À sua frente tinha uma chávena de café. Estava aguado
e o lote não parecia ser bom. Ali os lotes nunca pareciam ser bons. Nem os de
café, nem os de nada que ali se servisse. Sobravam as iscas, feitas com mais
engenho do que aprumo, mas que enchiam as terças feiras de clientes. Bebeu em
esforço o café que tinha à frente. Contorceu-se. O lote era pior do que de
costume.
Puxou de um jornal. Tinha a data da semana anterior.
Procurou interesse, algo que lhe justificasse o tempo gasto naquele sítio, que
não era pelo café, nem pelos pastéis, mais de batata que de bacalhau, nem pelas
terças-feiras de iscas, que calhavam sempre à terça e naquele dia era quinta.
Folheou, sem interesse, fingiu ler as gordas, tentou as palavras cruzadas, com
o insucesso habitual. Resignado, fechou-o.
Olhou para a rua, tinha por fim
parado de chover. Levantou-se de um salto que teria sido enérgico, anos antes -
antes da colhida que lhe levara a carreira, o dinheiro e o nome da caneta dos
jornalistas. Puxou da carteira para a pagar e voltar para casa onde, estando
tão só como ali, teria pelo menos melhor café.
- Já está na hora?
- Tem que ser...hasta mañana.
- Hasta mañana maestro!
Sorriu ao homem que, atrás do balcão, se fizera
seu amigo, com o passar dos anos de acompanhada solidão. Era por ele que ali
voltava todos os dias. Pelo resto de memórias e jornais antigos que guardava.
Pelo autógrafo que lhe pedira no primeiro dia que entrara naquela casa, numa
terça-feira de iscas, pelas faenas que lhe recordava.
Aquele
"maestro" de despedida ficou-lhe no ouvido. Encheu-lhe o peito,
desentorpeceu-lhe as pernas, revirou-lhe os cantos da boca para cima. Saiu para
a rua, com o mesmo andar presumido dos dois anos de figura. Voltou o
"compás" do andar, e as mãos tímidas saíram dos bolsos. Jurava ver
cabeças de pessoas a voltarem-se à sua passagem, a segredarem comentários de
admiração à figura que lhes passava diante.
Chegou ao seu primeiro andar, arrastou mesas e
cadeiras e voltou a pisar uma arena. Desempoeirou a muleta que ainda guardava.
Ali mesmo, na arena da sua sala de estar, reapareceu e fez mais uma faena
memorável. A mais perfeita de todas as que fizera. Tinha-a preparada há mais de
quarenta anos, e foi nessa noite que a desempoeirou, juntamente com a muleta e
o “compás” do andar. Não parava de ouvir “Maestro, maestro!”.
Já não sabia de
onde vinham os gritos. Se da sua cabeça, se do público em êxtase, pela obra de
arte que vira. Deitou-se por fim, orgulhoso, Ainda ouvia "Maestro!
Maestro! Maestro! Maestro"... Ele, Joaquim José Santos Abrantes ainda era
o mesmo – ele, Joselito de Portugal.