Texto: Duarte Palha
- Abro esta
página de word mas não me abre a mão às palavras. Chegam-me os temas à ideia,
mas falham-me as ideias aos temas. O toiro que sai dos chiqueros e
eu que não saio de traz do burladero. Toiro em praça, e eu sem capote para lhe
abrir. Procuro bandarilheiros que o toquem, burladero a burladero, mas vejo-me
só na trincheira.. A escrita tem tanto de partilha como de solidão.
Vem-me aos
dedos o agradecimento, sincero, profundo, que tenho guardado ao Ricardo
Levesinho e que ainda não saiu das intenções, desde que se despediu de Vila
Franca. Sai agora. Obrigado Ricardo! Obrigado por ter devolvido a grandeza e o
publico à praça com a qual partilho as raízes, o nome e os gostos. E faça o
favor de voltar um dia!
Não se me
alarga mais a ideia. Emperra-me a mão. Levanto-me, ligo a televisão, é dia de
Vitorinos em Sevilha. Falta pouco mais de uma hora. Entrevista-se Vitorino filho.
Gosto de o ouvir. Gosto muito. Fala com os factos, com as razões e sem os
dogmas. Como os inteligentes. Como os melhores. Não lhe pesa o apelido ou a
história. As fundas, "que, al final, si", o afeitar "que antes
quedarse una camada por lidiar" os toiros da ganaderia, os bons e os
"muy malos", como os da passada isidrada, assumidos sem desculpas, e
entre risos, com a naturalidade e a segurança dos grandes. Dá gosto ouvi-lo e
abre o apetite para o que lá vem.
Volto ao
texto, computador ao colo, televisão à frente, começa a previa da
corrida. Talvez me inspire.
Lembro-me do
vídeo. O vídeo do Ricardo Araújo Pereira e do Nuno Markl contra "as
touradas". É lixado - a palavra não é bonita, mas é a palavra que me
escapa para o teclado e não me sai da cabeça. É lixado alguém que tanto
admiramos (e sei que continuarei a admirar o génio inigualável que é o Ricardo
Araújo Pereira) atacar assim algo que tanto gostamos. E mentir descaradamente,
como fizeram. Estou lixado. E por aqui me acaba a prosa deste assunto. Nem me
merece mais atenção,
A corrida já
começou e vai andando, "muito obrigado". Com "apuntes". Mas
sem levantar a “feria”, que vai moribunda, arrastada por mulillas ao
som de silêncios indiferentes. Vai uma feira mansa e “pinchada”. Leva
três dias seguidos de "aburrimiento" e outro mais de
triunfalismo e toureio a cavalo em toiros de corda.
Roda o
terceiro da tarde. Boa faena e melhor estocada de Manuel Escribano. A corrida
começa a ter um tom mais alegre que o cárdeno dos toiros.
Lembro-me do
defeso. Lanço-me à escrita. Abro-lhe o capote. As tentas, as ferras, os treinos
de forcados. As tertúlias, os dias de campo, os amigos A inspiração não
dá para mais do que três lances mal rematados. Apago e recolho novamente ao
burladero.
Agigantam-se
os olés. Pouso os dedos. Toureia Ferrera e soa a música na Maestranza.
Levo-me de volta ao ano passado. Deixei a minha sala, o sofá, o computador e a
solidão da escrita e da aficion por cabo. Sentei-me outra vez,
tal como há um ano, no tendido cinco da praça sevilhana, com cheiro
a "puros", olés roucos e a banda, ora suave ora
intensa, a tocar nas minhas costas.
Escrevo
desenfreadamente, sem teclado, caneta ou bloco. Guardo tudo o que vejo, oiço e
sinto e escorrem-me as palavras pela mente. O toureio não é grande, é enorme e
devolve-me a inspiração.
As pedras
dos assentos estremecem a cada série, a cada remate. O toiro investe como
"los buenos" da casa, esquecendo os irmãos de Madrid. O
toureio nasce e flui pelos braços, pelas mãos, pelos dedos do matador.
O
toureio nasce e flui pela pele, pelos sentidos e sentimentos, do público, que
já não se sabe em Sevilha, em casa ou num sonho sem morada. As musas do toureio
descem novamente sobre Ferrera, que a cada muletazo, a cada pincelada, a cada milagre
sobre a arena, se reconverte em Deus do temple e do templo sevilhano.e o templo
- "roto" como o toureiro - entregue e crente, clama pelo
seu salvador.
Renasceu
a arte, renasceu "la feria", renasceu a inspiração que de
toureio se fez escrita. Renasceu Ferrera que a cada abrilada se reinventa. Tudo
voltou a ser como deve. Renasceu Sevilha numa quinta-feira improvável, Renasceu
Sevilha num Jueves de Resurrección.