Ilustração de Joaquim Pedro Quintella
Carta aberta
a José Mestre Batista
Exmo Senhor José Mestre Batista,
Escrevo-lhe
esta carta às onze da noite de um domingo de sol e moscas, que devia ter sido
também de toiros. Sobrou-me o sol. Neste domingo, como em tantos outros, não
fui aos toiros. Faltou-me o alento. Tenho o mar ao lado e sempre me soube bem a
areia nos pés. Defeito meu.
Escrevo-lhe
porque sofro de sono e as bancadas aos meus pés costumam estar vazias. Estico
as pernas e fecho os olhos entre ferro e ferro, se a noite anterior foi mal
dormida ou o almoço bem bebido. Encosto-me no cimento, onde deviam estar uns
joelhos, e assim me fico, imperturbável e dormente, pela corrida que não
perturba nem acorda.
Escrevo-lhe
pelas insuportáveis pevides que vão comendo ao meu lado, pelo fumo dos cigarros
que entretêm a falta de pevides e pelas dores que sinto, de estar sentado.
Escrevo-lhe pelas idas ao bar, onde me demoro, sem pressa ou peso de perder
algo, e pelas idas à casa de banho que sucedem as anteriores.
Escrevo-lhe
pelas longas conversas, à porta dos sectores. Com os porteiros, com polícias,
com bombeiros e quem mais aparecer. De lata de cerveja na mão, entre uma ida ao
bar e outra à casa de banho. Escrevo porque vou saltitando de lugar, variando a
companhia de toiro para toiro, e pelas gargalhadas, de costas voltadas para a
praça, em graçolas que sobem e descem degraus.
Escrevo-lhe
porque nada disto devia importar. Nem as pevides, nem as dores, nem o sono, nem
as sedes, ou as conversas saltitantes. Tudo devia ser o que se passa para lá da
trincheira. Devia querer estar sentado, agarrado ao lugar, de olhos postos na
arena e levantar-me apenas para aplaudir. Mas eu, como quase todos, vou aos
toiros como quem vai à praia - como neste domingo em que escrevo - com sestas
ao sol, idas ao bar, conversas com quem está três toalhas ao lado e o mar, que
é a razão de ali estarmos, apenas se espreita de vez em quando.
Exmº Senhor
José Mestre Batista, por certo perguntar-se-á, e com toda a razão, porque o
escolhi a si como destinatário deste desabafo sentido, se nunca o vi tourear e
aí onde está já não tem obrigação ou possibilidade de voltar a prender-me os
olhos à praça. Escrevo-lhe a si porque me falam os mais antigos que eu, do que
o viram fazer e como lhes guardava a atenção. Como os prendia ao assento, como
lhes parava o coração. Contam-me sobre esses dias porque ainda se lembram das
coisas que o viram fazer. Enfim…escrevo-lhe porque a mim, que tão disperso anda
o olhar na praça, custa-me não levar memórias que conte um dia....
Com os melhores cumprimentos,
Com os melhores cumprimentos,
Duarte
Palha"