Lembro-me de fazer 6 anos e soprar as velas na cozinha da
minha avó. Era um bolo de chocolate com
gomas em forma de golfinho. Podiam ser
ursos, mas eu lembro-me de golfinhos. É talvez a primeira memória visual que
sou capaz de identificar no tempo. Tenho outras memórias, que julgo anteriores,
mais ou menos nítidas, mais ou menos leves, perdidas na incerteza do tempo.
Quase todas me trazem toiros, cavalos, campinos, forcados e
toureiros. Quase todas me trazem a minha aficion.
Talvez mais intensa do que hoje. De usar panos de cozinha
como capotes e colheres de pau como bandarilhas. O toiro era, muitas vezes, um
banco - o banco parado no meio da sala, e eu em volta, a cravar ferros. Mais ou
menos o mesmo que tourear um murube.
Não me lembro se era
egoísta, se era chorão, teimoso ou divertido. Lembro-me de gostar de toiros.
Tenho esta certeza absoluta em relação a mim. Nasci apaixonado por “isto”.
Antes da memória dos golfinhos no bolo de chocolate, lembro-me de tentas no
campo.
Empoleirado nas varolas do tentadero da Quinta da Foz. E de
querer e não poder ir aos currais, sem que alguém me levasse pela mão. E de ir
aos toiros. Às corridas, ainda antes de me poder lembrar bem disso.
Lembro-me que esperava esses dias com uma ansiedade como
hoje já não espero. Nem eu, nem muitos dos actuais aficionados imberbes
esperarão. Querem roubar-lhes essa ansiedade.
Querem roubar a ansiedade a quem tenha menos de 12 anos.
Querem acabar com as pegas a cabeças de toiro, feitas com os dedos dos pais,
com as bandarilhas de colher de pau, com os capotes aos quadrados, com os
bancos que marram.
Mas nós diremos que
não. Que não deixamos. Que é a luta que nos resta. Desobedecer cegamente.
Porque não? Porque havemos de encarneirar sempre? Vamos, por uma vez, fazer as
coisas à nossa maneira. Como queremos. Como seres livres que somos. Vamos levar
crianças às praças. Mentir na idade que têm, escondê-las da polícia, fingir que
não conhecemos a lei. Porque é essa a nossa obrigação.
Alimentar a aficion de quem a tem sem saber porquê. Porque
um dia que eu seja pai, quero investir com um carrinho de mão, quero montar
praças com lego, quero ir aos toiros e explicar que o forcado da cara não é um
campino, por ter barrete.
Quero e hei-de fazê-lo.
Que não é a lei que mata a aficion. E não é a lei que nos impede de
fazer o que queremos. Nunca foi.